Em celebração à cultura brasileira e sua rica pluralidade, dedicaremos uma seção exclusiva a esse tema no Ponto Eletrônico. O Futuro Remelexo surge com o objetivo de compartilhar aprendizados, cultura, comportamentos emergentes e o impacto delas em inovações e novas tecnologias.
Por mais que a imensa diversidade do nosso país seja reconhecível, buscaremos trazer narrativas de um Brasil, até então, à margem das histórias contadas na publicidade e nas referências de soluções.
Muitos desses conteúdos apresentarão recortes territoriais, pois se entende a urgência em desmistificar a universalidade da cultura e do que entendemos como regionalização.
O “suco do Brasil” é uma mistura de sabores, temperos, ritmos e gente que compõem uma beleza complexa. A sabedoria popular vive na oratória e sobrevive geração após geração por meio das estórias.
Festas, crenças e ritmos no Norte do Brasil
Setembro e outubro foram meses de festa na região norte do Brasil, em especial no Pará. O ritmo que vem do curimbó, afoxé, banjo, flauta, ganzá, maracá, pandeiro e reco-reco levou mais de 30 mil pessoas a Alter do Chão, durante o Çairé, festa profana-religiosa popular do Divino Espírito Santo de origem amazônica. Já na capital paraense, estimou-se a presença de dois milhões de pessoas reunidas para a procissão do Círio de Nazaré.
Entre ritos e festas, o encantamento dos batuques e do carimbó e a euforia coletiva do Círio reforçaram a pergunta que fizemos aqui na Box1824 há alguns anos: como anda a fé do brasileiro?
As crenças — tal como a sociedade — estão em contínua transformação. Embora a fé permaneça a mesma, os rituais ganharam novas camadas ao longo dos anos devido à mudança de público, surgimento de novas tecnologias e impacto da crise climática, originando novos desafios e soluções nessa manifestação cultural.
Em Belém, milhares de pessoas se juntaram em romaria para a celebração católica do Círio de Nazaré. Em todos os cantos desta terra, só se ouve uma coisa: “É Círio, outra vez!”. A pé e puxando a corda, os promesseiros se emocionaram e, numa demonstração inexplicável de fé, a euforia coletiva tomou conta das milhares de pessoas vindas dos quatro cantos do mundo. O Círio possui diversas simbologias e impacta o turismo e o consumo local.


Em Alter do Chão, o atual campeão, o Boto Tucuxi, levou para o Çairódromo o tema Yandé, o Çairé!, em celebração aos seus ancestrais indígenas boraris. A magia dos encantados e a força coletiva tomaram conta da torcida, que, dentro e fora da arena, vibrou a cada segundo com as cores, a música, os rituais e as alegorias que recontaram a história e nos deram um gosto de futuro numa das maiores celebrações folclóricas do nosso país.
“A energia das torcidas é contagiante e as apresentações na arena são muito emocionantes. Em poucos minutos, eu e pessoas vindas de diversas partes do Brasil e do mundo imergimos e nos sentimos pertencentes daquele ritual. Yandé, O Sairé! significa “nosso” e naquele espaço a força coletiva fez festa. A “galera linda”, torcida do Boto Tucuxi onde eu estava, entrou no ritmo do carimbó junto aos brincantes, contagiando quem estava dentro e fora da Çairódromo. Ao final da apuração, apenas uma agremiação vence. Mas ali, todos ganhamos. “, conta Sue Coutinho, supervisora de comunicação institucional na Box1824, que passou um mês no Pará e pôde acompanhar de perto a organização dos ritos e do festival.
No oeste do Pará, locais e turistas participaram dos diversos ritos tradicionais que duraram cinco dias e fazem parte da programação do Çairé. Além dos brincantes, a torcida e os visitantes também têm seu papel no Festival dos Botos: a alegria e o movimento da torcida também contam pontos na avaliação geral dos grupos.


Nesse território, o sagrado e o profano se misturam e podem confundir quem vem de fora. Para recontar a lenda e manter viva a tradição de mais de 300 anos, novos elementos foram introduzidos ao longo dos últimos anos do festival. Além das orações e dos ritos tradicionais, a música e os carros alegóricos começaram a trazer discussões necessárias não somente sobre preservação de cultura e legado, mas desafios do ecossistema amazônico com caráter ambiental.
Juntamente ao festival, organizações socioambientais e lideranças da região participaram da programação de palestras incluída no cronograma do evento. Diversas gerações — dos mais velhos até as crianças — participaram dos debates e das apresentações teatrais, evidenciando que a crença do Yandé está mais viva e vibrante do que nunca nesse lado do país. O presente estava ali, encarando o futuro: são necessários a disseminação da união coletiva, o respeito à natureza e o cuidado com as pessoas.
Valorização Emergente: disputa de narrativas e fomento à produção cultural
Dentro do contexto histórico, há pouco tempo o carimbó era tão marginalizado quanto foi o funk ou o samba — além de outras manifestações culturais de nativos e negros. No “Código de Posturas de Belém”, documento de 1880, é possível ver que a prefeitura proibia a prática do carimbó. Somente no ano de 2014 foi considerado patrimônio imaterial brasileiro. Ou seja, a cultura popular do Pará enfrentou resistências conservadoras até mesmo quando o assunto é uma expressão popular muito enraizada na comunidade local.
Apesar do conservadorismo, a resistência popular culminou na intensa produção cultural da região nos últimos anos, evidenciando seu protagonismo. No oeste do Pará, em Alter do Chão, crianças são iniciadas no carimbó desde a instrumentalização e dança até a produção de instrumentos musicais para o carimbó pau e corda.
Os grupos que se apresentam na Quinta do Mestre são formados por famílias e amigos de infância. É de forma lúdica e da tradição da oralidade que o carimbó raiz tem ressignificado laços de afeto, fé e comunhão. O evento é a materialização do saber popular e da construção coletiva: um cuida do outro e todos cuidam de tudo — enquanto pequenos grupos de familiares cozinham, outros tocam, alguns dançam e todos fazem carimbó no final do dia.
Na baixa do rio Tapajós, praias paradisíacas se formam em toda a extensão territorial. Mas a beleza desse local não fica somente em sua paisagem. Alter do Chão tem como base da sua economia o turismo, mas é na experiência e na imersão cultural que faz crescer seu público todos os anos.
O miriti que produz o fruto do buriti vira cosmético, remédio, cobertura de casas e alimento. Dessa palmeira se faz arte e se distribuem histórias Brasil afora. Tudo isso move a máquina da economia local e gera o sustento de famílias na extensão da Amazônia.
Em Abaetetuba, a preocupação com o futuro da tradição mobiliza ações como as de Nildo Farias, artesão de miriti há 21 anos que promove diversas oficinas em colégios da cidade, em outros municípios e na capital paraense. Sua finalidade é “formar novos artesãos, para que as crianças conheçam e se interessem pela cultura” do município e do estado, “e possam dar continuidade a essa atividade”, conforme relatou para a jornalista Priscila Cotta.


Em 2023, o Çairé recebeu apoio do estado por meio do Programa Estadual de Incentivo à Cultura (Semear), executado via Fundação Cultural do Pará (FCP). Nesse mesmo ano, a Vivo reforçou seu compromisso de conectar cultura e tradição sendo incentivadora do Festival dos Botos.
Correspondendo ao emergente interesse do Sul pelo Norte do Brasil nos últimos anos, especialmente pela gastronomia e música paraense, a estrutura dos eventos e festivais tradicionais ganhou outras camadas — e preocupações.
Apesar da maravilhosidade das apresentações e dos rituais compartilhados, a organização não parecia preocupada com o destino dos resíduos gerados pela alta lotação de hotéis e restaurantes durante o festival. O lixo se acumulou pelas ruas e o número de animais abandonados cresceu.
Nesses contextos se sente a ausência do poder público, tanto em iniciativas de educação quanto na organização do evento. No que diz respeito à iniciativa privada, faltam logotipos no painel de apoio e recursos destinados à produção cultural.
Existem diversas oportunidades para descentralizar as verbas de patrocínio que hoje permanecem predominantemente no Sudeste. Há um Brasil que atrai cada vez mais turistas nativos e estrangeiros para o interior e que possui uma extensão cultural, uma conexão íntima com as comunidades. Mas os esforços precisam ser verdadeiramente conectados com os valores locais. Um exemplo disso acontece ali por perto: o Festival de Parintins, no Amazonas, tornou-se uma vitrine cultural e de iniciativas ESG.
Além do Assaí e Bradesco, a Coca-Cola também investe no Festival de Parintins. As torcidas também valem pontos nas apresentações dos “bois” e, para acender ainda mais a rivalidade, a Coca-Cola lançou a competição “Recicla, Galera” em parceria com o governo do Amazonas. A torcida que mais juntar material reciclável pode levar como prêmio o valor de R$20 mil reais para investir em ações de sustentabilidade da agremiação.


Nesse suco do Brasil, ainda há espaço para que mais marcas e negócios possam contribuir com a cultura local, preservando legados e futuros para as próximas gerações.