Você já teve a estranha sensação de que as redes sociais sabem exatamente o que você anda pensando e buscando? Não apenas procurando no âmbito do consumo, mas na esfera espiritual?
Cada vez mais, espalham-se nas redes sociais conteúdos que misturam crenças espirituais difundidas em mensagens de esperança, imagens surpreendentes, previsões astrológicas e vídeos que prometem explicar acontecimentos raros que sobrepõe a razão.
Em um contexto no qual noss relacionamos por meio de múltiplas redes e somos influenciados por elas, as crenças ganham novos sentidos e novas práticas por meio dos “algoritmos da espiritualidade”, que reivindicam o seu engajamento por meio de likes, comentários e compartilhamentos e em troca de um ótimo novo ano.
Redes transcendentes
Quando a vida se complica, a fé surge como apoio psicológico para lidarmos com nossas dores e nossos desafios. No Brasil, diante de todas as suas camadas e as injustiças, não faltam motivos para recorrermos às práticas de atração, seja em prol de um emprego estável, comida na mesa ou da segurança das pessoas que mais amamos.
A fé está fortemente enraizada na cultura do povo brasileiro — seja no âmbito institucional, por meio da prática religiosa, ou no pessoal, por meio de experiências individuais. É um dos principais valores dos brasileiros diante da ausência do Estado.
Segundo o Glorify, aplicativo que possibilita que cristãos façam reflexões, meditações guiadas, orações e leituras de passagens bíblicas, os usuários brasileiros estão consumindo cada vez mais a seção de meditação da ferramenta. Visando ajudar os fiéis a adquirir bons hábitos de adoração usando as funções de qualidade do aplicativo, seus criadores veem a seção de meditação como um dos seus carros-chefes, uma vez que possibilita o desenvolvimento espiritual e é uma das funções mais procuradas pelo público.
O estudo Valores dos Brasileiros mostrou que 96% da população citou “fé” e “esperança” como princípios essenciais de suas vidas. Em artigo publicado na Veja, o teólogo e pesquisador Rodolfo Capler comenta que “ao que tudo indica, a população brasileira continuará cada vez mais religiosa, porém, experimentará uma baixa institucionalidade em sua prática de fé”.
“Penso que a religião organizada sofrerá mudanças radicais nas próximas décadas, com a atualização das suas visões institucionais, modos de atuação e comunicação.”
Rodolfo Capler
Uma projeção populacional realizada pelo IBGE em 2019 mostrou que 99% dos brasileiros têm fé e 90% praticam alguma religião. O estudo Sintonia com a Sociedade (realizado pela Globo) trouxe uma descoberta importante sobre a flexibilidade da matriz religiosa no Brasil: o trânsito entre religiões é muito comum para os brasileiros. É comum encontrar pessoas de uma mesma família que fazem parte de religiões distintas. O sincretismo religioso em casa é uma realidade para 30% dos brasileiros.
Timothy Keller, pastor e teólogo americano, já havia feito o prenúncio de que tanto a fé quanto o ceticismo estariam em alta. Na sociedade, há variações no compromisso religioso e no exercício da prática religiosa atribuídos ao contexto socioeconômico e intergeracional, mas agora também influenciado pelas relações construídas nas redes.
“Quando olhamos para a nova geração, fica claro como eles já estabelecem uma relação mais racional com a religiosidade em sua vida. Os jovens possuem mais acesso à informação, questionam o papel das instituições, e essa realidade recai sobre sua relação com a religião também. Ficou claro em nossos estudos como grande parte deles são críticos em relação à postura de instituições religiosas e líderes mais dogmáticos. As próprias instituições religiosas entenderam isso, e estão buscando horizontalizar mais essas relações, promovendo debates de pautas públicas internamente, buscando dialogar com a ciência, tudo isso com certo controle obviamente, mas sabem que é uma atitude fundamental para conseguirem atrair e engajar os jovens dentro desses espaços.”
Sereno Moreno, líder de planejamento e pesquisa na Box1824
As faces do misticismo digital
Enquanto você arrastava o cursor da tela do seu celular em alguma rede social, com certeza deve ter esbarrado em algum vídeo motivacional, ou com uma mensagem espiritual, e sentido que precisava muito ouvir aquilo naquele momento. Talvez você tenha visto uma publicação no Twitter falando que o ano de 2023 será péssimo para o seu signo, ou um vídeo no TikTok com teorias conspiratórias. Estamos vivendo o que Moyosore Briggs chama de misticismo digital.
Segundo Briggs, o misticismo digital é um fenômeno que se situa no nexo da espiritualidade do velho mundo e dos mundos codificados pela nova era. “Eu gosto de chamá-lo de misticismo digital: uma crença coletiva, emergindo de nossa existência em rede, de que podemos transformar um resultado desejado em realidade”, comenta Moyosore.
Mas o problema está longe de serem as mensagens espirituais. O alerta vermelho está justamente no desejo profundo das pessoas de acreditar em algo para além da razão, resultando na crença de notícias falsas ou mentirosas. Em 2020, uma pesquisa da Avaaz apontou que 9 a cada 10 entrevistados receberam pelo menos uma mensagem falsa sobre a Covid-19 e que mais de 70% dos entrevistados acreditaram nesses conteúdos. O que explica esse comportamento é o que chamamos de “vieses de confirmação”. O psicólogo Cristiano Nabuco, coordenador do Grupo de Dependências Tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da USP, explica que temos diferentes tipos de vieses. “Na medida em que você desenvolve uma opinião, isso faz com que você se torne muito ligado a ela”.
No TikTok, os algoritmos estão apresentando cada vez mais conteúdos que combinam crenças e teorias conspiratórias. Evelyn Juarez, um jovem de 25 anos de Dallas, com 1,4 milhão de seguidores, cria vídeos comentando crimes reais e teorias da conspiração. (Fonte: Vox)
No Brasil, postagens sobre uma suposta cidade perdida no meio da Amazônia viralizaram no TikTok e Twitter. Segundo as publicações, a cidade de nome “Ratanabá” seria maior que a cidade de São Paulo, escondendo riquezas e tecnologias avançadas. Essas teorias da conspiração afirmavam que a descoberta ajudaria a explicar “o verdadeiro interesse de dezenas de homens poderosos na Amazônia” e até o desaparecimento do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira.
Em entrevista para a BBC, Eduardo Góes Neves, professor do Centro de Estudos Ameríndios e coordenador do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos do Museu de Arqueologia e Etnologia, ambos da Universidade de São Paulo (USP), comentou que o interesse na “cidade perdida” nos últimos meses parece uma mistura da ingenuidade das pessoas, que querem acreditar nesse tipo de coisa, com interesses econômicos de exploração da Amazônia”.
Joseph Russo, professor de antropologia da Wesleyan University, acredita que essa teia de crenças em expansão na internet possa se tornar uma religião. Ainda mostrando seus primeiros sinais, esse comportamento cresce e tenta corrigir os erros sociais e desafios que se retroalimentam com os quais o atual sistema não consegue lidar. Para Rebecca Jennings, da Vox, a religião da internet também já culminou em violência no mundo real, sendo os exemplos mais óbvios o golpe relacionado ao QAnon, em 6 de janeiro, e as teorias da conspiração em torno das vacinas que salvam vidas.
Tecnologias da reconexão
Paira no ar um desejo profundo pelo acreditar e por uma esperança pulsante — seja no institucional ou individual. A busca pela conexão e esperança sempre estará em alta, principalmente em momentos críticos. Nesse cenário, as marcas podem auxiliar na busca pelo bem-estar, equilíbrio e pela reconexão entre as pessoas, aprofundando seu relacionamento com os clientes, transpassando os muros da rotina e participando de seus rituais.
Após se inspirar nos chás que expandem a mente, a Despierta se baseou nas práticas indígenas mexicanas de cura para criar chás fora do comum. Repletos de adaptógenos, produtos químicos naturais e vitaminas, seus chás possuem uma fórmula capaz de estimular sonhos lúcidos, um tipo de sono onde as pessoas supostamente têm consciência de que estão sonhando e têm controle sobre suas ações.


A Despierta foi fundada por Dulce Ruby, uma artista multidisciplinar, guia de meditação e coach do México. Ruby explica: “Espero que continuemos vendo a Despierta como mais do que apenas uma marca de chá de ervas, mas uma empresa de estilo de vida educacional, transformadora e fornecedora de ferramentas. A identidade da marca e a embalagem da empresa também expressam seus princípios cósmicos e místicos, apresentando esferas brilhantes, estrelas e planetas”. (Fonte: The Future Laboratory)
No Brasil, a Capins da Terra existe há quatro anos e tem como propósito proporcionar a reconexão e o caminho de volta às terapias ancestrais, no fazer artesanal e na medicina natural, criando produtos de fácil acesso ao autocuidado, à conexão e à cura.


O escritório de design da Alabaster.Co, sediado na Califórnia, vem desde 2016 redesenhando a identidade visual de diversos livros cristãos. Atenuando as barreiras entre uma identidade visual leve, espontânea e atraente para os jovens e aquela, talvez, mais carregada de tradição e símbolos, os profissionais criativos aplicam uma estética contemporânea e “instagramável” às escrituras, em uma tentativa de tornar o cristianismo mais cool para a Geração Z.
Com os avanços tecnológicos, a espiritualidade está se moldando em novas formas e novos conteúdos. É assim que as pessoas estão criando outras formas de conexão e práticas de cura, onde a única regra é nunca perder a esperança. Nesse sentido, é necessário redobrar a atenção sobre a espetacularização e o comércio da fé, que exploram nossas vulnerabilidades para fins de distração e benefícios egóicos, como no caso das teorias conspiratórias ou da crença em uma sociedade de valores meritocráticos e de pura igualdade.
Ao mesmo tempo, há uma oportunidade de as empresas apoiarem as pessoas por meio de práticas de cura e conexão em tempos de desamparo, navegando em universos mais lúdicos e compartilhando crenças e valores. E, como resultado, transformando suas comunidades de dentro para fora.