Um cidadão médio, ao comprar uma furadeira, não tem como principal intenção a posse da furadeira como objeto em si, mas sim solucionar a necessidade de fazer alguns furos na parede. Sendo assim, ter acesso a uma furadeira (pertencente a um familiar ou amigo, comprada coletivamente entre os moradores de um prédio residencial ou a partir de um serviço de assinatura que dá acesso a diversas ferramentas quando necessário) traria o mesmo benefício por um custo igual ou até inferior, certo? Este exemplo ajuda a fundamentar o que Kevin Kelly, co-fundador da revista Wired, considera um dos principais marcos da transição para um potencial novo contexto econômico: o entendimento de que o acesso é mais relevante que a posse.
Serviços como Uber e AirBnb operam com modelos de negócio que consideram o acesso mais importante que a posse: o Uber atualmente é a maior empresa de transporte com carros particulares do mundo e não possui um veículo em sua frota. O AirBnb é a maior empresa de reservas de hospedagens do mundo e não possui nenhum imóvel. No entanto, nos permitem acesso a toda uma frota de carros e diversas acomodações ao redor do mundo.
Em meio a uma profunda crise de confiança nos modelos já estabelecidos – instituições públicas, partidos políticos, marcas e empresas convencionais, etc – passamos a buscar novas perspectivas. Vivemos na transição entre o fim do atual modelo econômico e o despertar de novas economias, mais abertas a colaborar e compartilhar. É o que argumenta a autora Rachel Botsman em seu livro “O que é meu é seu: como o consumo colaborativo vai mudar o nosso mundo”. Em todos os serviços da economia colaborativa, a construção de comunidades ao redor de um propósito e a manutenção contínua da reputação, são essenciais. De fato, para Rachel, as moedas desta nova economia são transparência e confiança.
Acesso, comunidade, propósito, reputação, transparência, confiança: são as bases para, a partir das tecnologias que evoluem exponencialmente, construirmos uma nova forma incorruptível de realizar e registrar transações financeiras – e mesmo outros tipos de transações para praticamente tudo que tenha valor. Esta nova forma se consolida por meio de um protocolo digital: o Blockchain.
Redes de Baran
A essência do Blockchain é a confiança, como já afirmou Ronaldo Lemos, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS). Fica para trás o modelo de organização centralizada, no qual quem tem a posse – dos recursos, da mão-de-obra, dos meios de produção, da informação – dominava o mercado, e entra em cena uma rede descentralizada na qual, por meio de plataformas tecnológicas, comunidades participam da economia (oferecendo e demandando) e o acesso é a força principal da dinâmica. É o caso do Uber e AirBnb.
Mas e se o modelo descentralizado for ainda uma solução intermediária? Essas empresas podem rapidamente se tornar novos centralizadores. Uber e AirBnb, mesmo trazendo acesso e possuindo vários concorrentes, tornaram-se gigantes dominantes em muitos mercados.
Ainda estamos no meio do caminho. Conceitualmente, os estudos do matemático Paul Baran e seu diagrama de redes, datado de 1964, apontam que a evolução natural para a sobrevivência de uma rede de modelo centralizado e posteriormente descentralizado seria o modelo distribuído, ou seja, em que todos os pontos estão diretamente conectados e acessíveis entre si.
O Napster, já em 2004, valia-se do modelo distribuído, em que todos os usuários do sistema também eram responsáveis por distribuir os arquivos ali disponíveis. O mesmo vale para os atuais serviços P2P (peer-to-peer), como o protocolo torrent de distribuição de arquivos, exemplos que sem dúvida impactaram e transformaram a indústria do consumo de música, cinema e entretenimento. Mas como aplicar este modelo em escala e em maior complexidade a ponto de direcionar novos paradigmas mercadológicos, econômicos, políticos e sociais?
Quem afinal é Satoshi Nakamoto?
Em síntese, Blockchain é um banco de dados distribuído e independente de computadores que, por consenso, valida as ações realizadas uns pelos outros. Estas informações são confiáveis porque são validadas graças às ações da própria comunidade e, uma vez inseridas, ficam registradas em blocos virtuais de informação sempre associados aos blocos anteriores, de modo permanente, o que o torna potencialmente incorruptível. Na prática, a tecnologia tem potencial de eliminar instituições financeiras ou outros intermediários na venda de bens e serviços.
Esse modelo foi criado por Satoshi Nakamoto, mas ninguém sabe ao certo quem é/são ele(s) ou ela(s), visto que sua identidade nunca foi revelada, e as pessoas por trás do modelo jamais confirmaram sua autoria. Mas mais interessante do que a questão da autoria é a reflexão de como, por meio da tecnologia, algo pode ter o poder de transformar a estrutura econômica do mundo como um todo, assim como foi o surgimento da internet.
Além do Bitcoin: usos e aplicações do Blockchain
O Bitcoin é a aplicação mais conhecida do Blockchain e o surgimento de ambos ocorreu conjuntamente, de modo que os nomes são muitas vezes interpretados como sinônimos. Vale ressaltar que esta moeda digital tem lastro real (à época desta publicação 1 bitcoin, representado pelo símbolo ฿ ou pelas letras BTC, estava com cotação de cerca de mil dólares ou três mil reais) e já é aceita como forma de pagamento em vários locais ao redor do mundo. Para começar a transacionar essa moeda, basta criar uma carteira digital, onde os dados do proprietário permanecerão seguros por criptografia.
Plataformas baseadas em Blockchain permitem construir desde moedas distribuídas – como é o caso do Bitcoin, em que todas as transações são validadas pela própria comunidade de usuários sem a necessidade de uma instituição financeira –, passando por crowdfunding de empresas que fazem pré-venda virtual de seus futuros produtos, até mesmo começar organizações virtuais em que os membros tomam decisões transparentes por meio de votos baseados em suas participações.
Não param de surgir diversas novas iniciativas baseadas em Blockchain.
Os tipos de usos e modelos de negócio variam de acordo com a complexidade e o nível de automação, desde a criação de contratos inteligentes (smart contracts que, após validados, executam automaticamente todas as suas definições), agentes autônomos operando em rede, redes de empresas transparentes e abertas (ONE, open network enterprises), e até um modelo mais complexo, de organizações distribuídas autônomas (DAO, distributed autonomous organizations). O Ethereum é um dos principais espaços onde essas aplicações podem ser construídas.
Em 2016, sete bancos afirmaram ter movimentado dinheiro real por meio de Blockchain em caráter de teste. O banco Santander, por exemplo, [highlight 3926 “afirmou”] ser o primeiro banco do Reino Unido a usar a tecnologia Blockchain para efetuar transferências internacionais entre 10 e 10mil libras por dia.
Na próxima atualização do pacote Office, a Microsoft pretende disponibilizar a inclusão de suporte ao Bitcoin em planilhas Excel. Com este novo recurso, o usuário será capaz de realizar opções de formatação, como estilo de moeda, nativamente no software. Não é de agora que a Microsoft tem trabalhado com Bitcoin e blockchain. Desde 2014, a plataforma de jogos Xbox aceita pagamentos em Bitcoin. E o Azure, plataforma de nuvem da Microsoft, já oferece serviços de aplicações executando Blockchain em sua base de funcionamento.


A rede de supermercados Walmart começou a testar, em 2016, o uso do Blockchain em produtos de suínos na China. A esperança da companhia é que isso os ajude a endereçar situações de contaminação de forma mais rápida e eficiente.
A Everledger, uma startup de tecnologia com base em Londres, testa o Blockchain com o intuito de substituir certificados de autenticidade e procedência de [highlight 3927 “diamantes”] emitidos em papel por certificados digitais. A intenção é não só atestar a procedência, como também ajudar os compradores finais a comprovarem a autenticidade das pedras no caso de venda ou de roubo.


Um exemplo do uso do Blockchain é para uma maior transparência nas eleições, especialmente nas doações a candidatos. Os criadores do app Voto Legal, de São Paulo, querem fazer com que os eleitores saibam em tempo real a quantia que sai do cartão de crédito do financiador e quem está contribuindo para aquela campanha.
Para diluir burocracias, a empresa brasileira OriginalMy permite que seus usuários façam o registro de documentos usando Blockchain. Em vez de ir a um cartório reconhecer firma de um documento ou fazer uma cópia autenticada, por exemplo, é possível fazer uma assinatura digital. Como a informação não pode ser deletada ou alterada, fica provado que aquele documento existia naquele momento.
O Blockchain também oferece possibilidades de viver formas descentralizadas de governos. A BitNation é uma startup que visa criar um modelo de governança descentralizada em que as pessoas pagam e usam o serviço independentemente de sua cidadania. Isso pode incluir escrituras, fusões corporativas e outros serviços que são tradicionalmente fornecidos pelo governo. No início de 2015, a plataforma validou seu primeiro cartão de identificação, comprovando a existência de Janina Lowisz.


Nenhuma tecnologia é neutra — toda tecnologia é ambígua
Quando quem demanda e quem oferta estão diretamente conectados, os intermediários são eliminados. No futuro, negócios baseados em centralizar os meios de produção, fornecedores ou informações não mais farão sentido, e isso dá mais importância àqueles que têm real valor a agregar ao sistema. É isso que faz com que o Blockchain seja tratado como potencial desencadeador de uma revolução na economia e na sociedade.
É um cenário desejável, porém em aberto. Para concretizar as promessas que emergem com as tecnologias, é preciso parar de se orientar pela escassez e passar a respeitar a abundância. Se queremos causar mudanças, precisamos dar o primeiro passo. Não podemos encarar o mundo pelo paradigma da escassez, que ensina que não há o suficiente para todo mundos, ou seja, que não há posses, recursos, oportunidades para todos. Com essa crença, há competição para estocar, há escassez de ofertas, devido à escassez os custos aumentam, o que gera exclusão dos que não podem pagar… Esta lógica alimenta uma profecia auto-realizável viciosa, em que sempre falta algo para alguém.


Ao adotarmos uma cultura mais aberta, compartilhando patrimônios, processos e conhecimentos, passaremos a operar sob o paradigma da abundância. A partir deste paradigma acreditamos que há tudo para todos, colaboramos para criar, o fluxo aumenta, os custos diminuem e há a inclusão daqueles que antes não podiam pagar.
Vale a reflexão de que não devemos alimentar um olhar utópico e idealista sobre o Blockchain. Não só o medo é um sentimento comum à quem se enxerga como plateia das novas tecnologias, mas também o vislumbre. Toda tecnologia deve ser encarada como ferramenta de ação, e nós somos agentes de qualquer mudança que queremos criar com ela.