Imagem: Valery Rabchenyuk, Unsplash.
Um “reino eremita” milenar constantemente preocupado com a autoproteção contra os inimigos, invasores e a contaminação cultural. Uma nação em competição histórica com outras, especialmente contra vizinhos poderosos. Uma cultura cheia de conflitos internos que levaram a uma sociedade dividida, repressiva e hierárquica. A obediência à tradição rígida e aos valores morais moldaram a mentalidade social transmitida de geração em geração. Essa herança ainda está fortemente enraizada em cada identidade sul-coreana. Ela molda uma identidade compartilhada por todos no país. Hoje em dia, muitas pessoas questionam essas raízes, mas não necessariamente se sentem confortáveis para falar abertamente sobre elas. Essas raízes podem ser uma fonte de segurança e orgulho, mas também criam dúvidas e tensões.
Nos últimos anos, a Coreia do Sul tornou-se uma sociedade aberta, abundante e bem-sucedida. As grandes cidades passaram por evoluções urbanas e de consumo extremamente rápidas. Portanto, Seul se tornou um ícone de uma cidade global. A infraestrutura urbana e o desenvolvimento tecnológico transformaram a Coreia do Sul em um dos países mais conectados do mundo. As pessoas começaram a se sentir confiantes para abrir suas portas para o mundo, adotando comportamentos e estilos de vida emergentes.
Outras gerações estão vivendo essas novas mentalidades e tentando traduzi-las para suas vidas atuais. Claro que não é fácil e elas também estão enfrentando muitas críticas. Seu desafio é adequar as opções emergentes e ilimitadas às possibilidades cabíveis para uma sociedade em transformação.
Um olhar para o futuro… E para o fenômeno do presente!
De fato, os jovens coreanos são muito conectados com a representação de si mesmos, mas são muito cuidadosos para não desrespeitarem as suas tradições. Com o coração na tradição e olhos no futuro, a Coréia do Sul é um terreno fértil que finalmente colhe os frutos dos investimentos em produção cultural que começou nos anos 90.
Segundo o G1, o país triplicou seu Produto Interno Bruto (PIB) entre 2000 e 2018 – de US$ 500 bilhões a 1,5 trilhão, o hallyu faz parte da inovação em cultura e tecnologia que ajudou nesse salto. O orçamento do Ministério da Cultura, Esportes e Turismo da Coreia do Sul em 2021 foi de 6,8 trilhões de yuons – cerca de R$ 31 bilhões, mais de dez vezes maior do que o do Brasil, que foi de R$ 2,2 bilhões para as três áreas.
“A Coreia investe na área cultural porque achou que era um mercado de futuro, que vai trazer resultado. Nos próximos anos, o mercado cultural vai crescer mais que os de Tecnologia da Informação e de automóveis”, disse Sang Kwon, diretor do Centro Cultural Coreano no Brasil.
A onda coreana (ou hallyu) invoca o famoso soft power (poder brando), que é a influência de uma nação por meio dos seus produtos culturais. Os cientistas políticos consideram duas moedas de influência no mundo: o hard power e o soft power.
O hard power se caracteriza pelo poder bélico financeiro, enquanto o soft power é a capacidade de um país influenciar de forma sutil o imaginário de outros povos. Parece que está dando certo, afinal os k-dramas (segmento de filmes, séries e programas de TV produzidos na Coréia do Sul) estão dominando as plataformas de streaming e as conversas na hora do jantar em casas do mundo inteiro.
O Ocidente está em um relacionamento sério com a cultura pop coreana. Um estudo revelou que o Brasil é o terceiro lugar no mundo e o primeiro nas Américas onde houve maior aumento de audiência dos dramas coreanos. A pesquisa foi realizada pelo Ministério da Cultura, Esportes e Turismo pela Fundação Coreana em 18 países para o Intercâmbio Cultural Internacional, entre setembro e novembro de 2020.
O estudo também mostrou que o clichê é um dos elementos de sucesso das produções. Entre os gêneros mais consumidos, está a comédia romântica e as séries estreladas por idols (membros de grupos K-pop) e fantasia.
“Uma das coisas que prendem a atenção nos kdramas é a abordagem mais leve e fantasiosa da vida. Tudo é muito doce“, comenta Manu Gerino ao portal UOL. Ela é dona do canal Coreanismo, que cresceu 50% desde o início do isolamento.
A grande onda
A originalidade das histórias e o embasamento no roteiro também estão entre os principais interesses da audiência. Na contramão do romance, Round 6 aparece como uma representação crítica da democracia e da sociedade contemporânea inspirado no mangá Kaiji, um clássico infinito dos anos 1990. Uma mistura de injustiça social, jogos psicológicos e cotidiano: a realidade e a ficção se misturam em (im)perfeita harmonia.
Atribuir o sucesso de Round 6 à linha de Parasita, que levou o Oscar de Melhor Filme no ano passado, embora as construções narrativas sejam parecidas, é injusto e até um pouco superficial. A série estreou na Netflix no dia 17 de setembro e ultrapassou o recorde de audiência de Bridgerton, que acumulou mais 82 milhões de espectadores após o lançamento em dezembro de 2020.


O valor da série é estimado em US$ 900 milhões, o equivalente a quase R$ 5 bilhões, na cotação atual, de acordo com a Bloomberg News, que cita números de um documento interno da companhia.
A Decode realizou uma pesquisa sobre o sucesso da produção e, de acordo com os dados, mais de 165 milhões de pessoas já foram impactadas na web, de alguma maneira, pela série. Round 6 permaneceu no trending topics em mais de 10 países e fez da modelo e atriz Jung Ho-yeon, intérprete de Sae-byeok, a mulher mais seguida da Coreia do Sul no Instagram.
Segundo Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, “nos tornamos fanáticos por jogos de sobrevivência porque esta é a catarse demandada por nossa época, comandada por demissões massivas, reduções de custos arbitrárias e redefinições cotidianas das regras do jogo”.
Para muitos, a produção é uma crítica ao capitalismo e expõe emergências das culturas não ocidentais. “Eu quis escrever uma estória que fosse uma alegoria ou fábula sobre a sociedade capitalista moderna, algo que retratasse uma competição extrema, como a extrema competitividade da vida”, disse o diretor da série, Hwang Dong-hyuk, à revista americana Variety.
Baseado em fatos bem reais
Diversas conversas retratadas na série acontecem todos os dias na Coréia do Sul.
A competidora Sae-byok entra no jogo a fim de ganhar dinheiro para reunir sua família, que se separou enquanto fugia do regime repressivo do país vizinho.
Para quem não fala coreano, um detalhe pode ter escapado: Sae-byok esconde seu sotaque norte-coreano e fala no dialeto padrão de Seul durante a maior parte da temporada. Embora Seul tenha uma série de programas e benefícios de reassentamento em vigor, os desertores podem sofrer discriminação por parte da população local.


Contrários à fama de “modelo econômico e de desenvolvimento”, dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que quase 17% dos mais de 51 milhões de habitantes da Coreia do Sul viviam na pobreza antes da pandemia de COVID-19. Na Coreia do Sul, apenas 1% da população detém 12,2% da riqueza do país.
Apesar da desigualdade menor quando comparada ao Brasil, três em cada quatro jovens entre 19 e 34 anos querem deixar o país, de acordo com uma pesquisa publicada em dezembro pelo jornal The Hankyoreh.
Para além de Round 6 e k-pop, ainda iremos ver e ouvir muito sobre a influência da Coréia do Sul na indústria cultural e os impactos nas relações socioeconômicas do país. Em 1994, o “caso Jurassic Park” colocou a indústria sul-coreana de audiovisual em alerta. Mais de 20 depois, parece que Hollywood tem seus dias contados — ou, pelo menos, ameaçados. O hallyu veio para ficar.