Policultura de narrativas - BOX1824
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Policultura de narrativas

Vivemos em um sistema que há centenas de anos se retroalimenta do caos gerado por relações de dominação e exploração como forma de manutenção, sendo incapaz e  propositalmente isento de solucionar os problemas que ele mesmo cria. Em Epistemologias do Sul, Boaventura de Souza Santos descreve um campo teórico, metodológico e pedagógico que desafia o domínio do pensamento do Norte global e nos ajuda a pensar em novas — e urgentes — narrativas. Enquanto isso, o tempo de agir vai ficando mais curto.

Então, vamos aos fatos: 

  1. O mundo está passando por profundas transformações e em uma velocidade crescente;
  2. Precisamos encontrar respostas urgentes para certas questões;
  3. Precisamos romper com a lógica colonial da produção e disseminação do saber para enfrentar um contexto de policrise.

Debruçamo-nos sobre as implicações de um modelo de monocultura na economia, o impacto e a perpetuação de narrativas coloniais. Por meio do conceito de policultura de narrativas — no qual resgatamos e cultivamos diversas perspectivas e pontos de vista —, esgueiramo-nos pelas frestas para trazer novas narrativas econômicas.

O mundo não é mercadoria

 

Em janeiro de 2023, lideranças globais se reuniram em Davos para o Fórum Econômico Mundial, cujo tema foi “Cooperação em um mundo fragmentado” e que reuniu cerca de 1.700 líderes empresariais e 400 líderes políticos, incluindo chefes de estado e ministros de governo.

Em meio a tantas crises geopolíticas, sanitárias e à emergência climática, o Relatório de Riscos Globais apresentou um estudo preocupante: um conglomerado de riscos presentes e futuros que interagem entre si e podem provocar desastres imprevisíveis.

“A interação entre impactos da mudança climática, perda de biodiversidade, segurança alimentar e consumo de recursos naturais é um coquetel perigoso. Sem uma mudança política significativa ou investimentos, essa combinação apressará o colapso do ecossistema, ameaçará as ofertas de alimentos, amplificará os impactos dos desastres naturais e limitará novo progresso da mitigação climática.”

John Scott, Diretor de Risco de Sustentabilidade do Zurich Insurance Group

 

A expansão dos mercados e a disseminação de ideais neoliberais transformaram a forma como nos relacionamos com o mundo à nossa volta. Uma dessas expressões se deu por meio da globalização, que privilegiou, principalmente, empresas multinacionais e grandes conglomerados do Norte global. Se, por um lado, o sistema reagiu positivamente à expansão de seu mercado consumidor e à exploração de mão de obra e matéria-prima de países em desenvolvimento, por outro, silenciou-se diante do seu fracasso econômico, cultural, social e ambiental.

“A economia de mercado não obteve senão uma vitória parcial, uma vez que não conquistou nem os corações, nem as mentes.”

Jean Tirole

O premiado economista francês Jean Tirole estabeleceu, para a economia, uma proposta de agenda que trabalhasse em prol do bem comum. Proposta esta que, segundo ele, opõe-se ao modelo econômico que triunfou sobre os valores humanistas, transformando o mundo em um lugar sem piedade, sem compaixão, entregue ao interesse privado e responsável pela diluição do laço social e dos valores ligados à dignidade humana, além do recuo político e dos serviços públicos, ou ainda a efemeridade de nosso meio ambiente.

Kees Klomp é professor, consultor e empresário e, após ter sido apresentado ao ensino budista, decidiu largar seu emprego e usar suas habilidades de negócio apenas para ajudar a humanidade. Como consultor, auxilia diversas startups de propósito e impacto, como a Mobile Factory, que transforma lixo em casas temporárias em áreas de desastres. Klomp também é coautor de Thrive: Fundamentals for a new economy, que fornece insights sobre abordagens alternativas à economia que são sustentáveis e justas tanto para a sociedade quanto para o planeta a longo prazo. 

Klomp defende a ideia de que precisamos de uma narrativa diferente — de preferência, nova e viável. Ele acredita que nosso sistema atual é muito mais do que apenas um sistema, é uma história, é fé, é religião. “Acreditamos que dinheiro e sucesso individual equivalem à felicidade. Precisamos substituir isso por uma nova narrativa”, elabora.

“O modelo de economia neoclássico, baseado no crescimento permanente e na maximização do lucro, está ultrapassado. Não oferece soluções para os desafios existenciais que enfrentamos, como a crise climática e o colapso da biodiversidade. Precisamos de uma visão de mundo diferente na qual reconheçamos que dependemos da interação saudável de toda vida na Terra para nossa prosperidade, nossa saúde e nosso bem-estar. Precisamos de uma mudança basilar, saindo de uma economia ecológica, onde os objetivos ESG são apenas um aspecto do discurso, em direção a uma ecologia econômica, onde cada decisão é, antes de tudo, motivada ecologicamente.”

Kees Klomp

Creditocracia: Estamos vivendo numa sociedade refém do crédito? 

Há quem defenda essa narrativa econômica, ainda que seja constantemente prejudicado por ela. No Brasil, a cada 100 famílias, 79 estão endividadas, conforme levantamento mensal realizado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). E o que chama atenção é que a maioria dessas dívidas não está atrelada a bancos, mas, sim, a serviços como contas de luz, telefone, internet etc. 

Estamos falando de cerca de 67 milhões de pessoas inadimplentes que, para além de todos os desafios cotidianos, vivem sob a ameaça de terem serviços essenciais interrompidos. Em contrapartida, os estados brasileiros somavam R$ 896,2 bilhões em dívidas a receber de empresas em 2019, aponta estudo inédito realizado pela Fenafisco, entidade sindical que representa os servidores públicos fiscais tributários. 

Com a pandemia da covid-19, a fome voltou a figurar no Brasil em níveis recordes. Em 2022, o Brasil apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer — o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave. Durante esse mesmo período, o Brasil registrou “ganho” de 59 mil novos milionários, segundo relatório da Credit Suisse. Ainda segundo o relatório, a riqueza global cresceu 9,8% em 2021. 

A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) divulgada em 31 de março de 2022 revelou que 77,5% das famílias brasileiras estão endividadas. O estudo ainda mostrou que 69% das compras feitas no cartão de crédito são de necessidades básicas, como de alimentos e supermercado; 42% são realizadas para aquisição de roupas e eletrodomésticos; ao passo que 41%, para remédios e tratamentos médicos. 

Você já ouviu falar em “endividamento compulsório”? Ou, quem sabe, em “creditocracia”?

A maior parte da população brasileira é refém de instituições financeiras. Vivemos o que o pesquisador e professor de análise social e cultural da Universidade de Nova York, Andrew Ross, chama de “creditocracia“. 

Segundo Ross, “uma creditocracia surge quando o custo dos bens, sem importar o quanto sejam básicos, tem que ser financiado com dívidas, e quando o endividamento se torna a condição não apenas para melhorias materiais na qualidade de vida, mas também para cobrir as necessidades básicas”. 

Em seu livro Creditocracy: And the case for debt refusal, Ross analisa diversos episódios históricos, como quando os governos da Itália e da Grécia, após a crise financeira global de 2008, tiveram que cortar massivamente os gastos públicos — prejudicando seus cidadãos — para satisfazer os credores estrangeiros. Essa decisão criou um debate sobre onde começa e onde termina a soberania de um Estado, bem como o que faz de seus cidadãos servidores e vítimas de dívidas. O endividamento em massa corrói a democracia.

Antes tarde do que nunca

Essa monocultura de narrativas na economia, além de falha, é genocida. Estamos vivendo em um contexto de policrise, no qual navegamos em um mar turbulento — alguns de nós de dentro de botes e outros, de navios. 

A emergência climática e os conflitos geopolíticos estão causando uma crise migratória ou, como a geografia denomina, explosão geográfica. Como consequência, a fome e a miséria se instalam na população migrante e, em uma espiral de impacto, a explosão geográfica também transforma a rotina de moradores locais. 

O avanço do garimpo em terras indígenas causa poluição nos rios e extinção da fauna e da flora, além de culminar em casos de violência na disputa por terras protegidas. Como consequência, temos quilômetros e quilômetros de terras devastadas e o genocídio de povos originários. Esses acontecimentos estão diretamente ligados ao clima. 

A saída dessa realidade está no investimento público em processos criativos de governança global. Precisamos de uma nova narrativa e romper com a monocultura em diversos setores da sociedade. 

Em um encontro com a mídia independente, o atual presidente Lula declarou que “o mercado precisa ter sensibilidade. Não é só para ganhar dinheiro. É para permitir que os outros possam ganhar alguma coisa. Eu não sei se o mercado, às vezes, fica esperando que a gente se faça confiar. Muitas vezes parece que a gente tem que pedir ao mercado: ‘goste de mim, me deixe governar, me deixe fazer as coisas para as quais eu fui eleito’… (…) que a gente tem que fazer. Nós temos que construir uma narrativa contrária àquela do mercado”. (Fonte: Exame)

Em contrapartida, precisamos de iniciativas (ainda que do setor privado) que visem a justiça social. A Sofi é uma startup de impacto voltada para a saúde financeira, mas, além de auxiliar na renegociação de dívidas — baseada em propostas flexíveis e conhecimento —, a empresa tem como propósito fazer com que seus clientes tomem decisões mais saudáveis em relação à própria saúde financeira. O endividamento, além de ser prejudicial para famílias que já vivem no limite, pode ser crucial para toda uma comunidade. 

Outra iniciativa é a conta digital do Banco Maré. Inicialmente, a conta era exclusiva para moradores do Complexo da Maré no Rio de Janeiro, mas agora está disponível para diversas regiões do Brasil. A conta possui uma moeda social própria chamada “palafita”, que é equivalente ao real brasileiro. A ideia é permitir sua adoção em comunidades para que o dinheiro circule em determinada área de modo a fomentar o comércio local. 

Fintech do Complexo da Maré combina impacto social, tecnologia e serviços financeiros
Fintech do Complexo da Maré combina impacto social, tecnologia e serviços financeiros

Em Cabo Verde, uma região agrícola enfrenta desafios perante a crise climática: uma seca que dura há cinco anos. Dados divulgados pelas Nações Unidas também revelaram que as ilhas cabo-verdianas sofrem com um fluxo de detritos plásticos trazidos pela corrente oceânica. 

Entre seus doadores, o projeto “Fomento de Práticas Agrícolas Sustentáveis” do município de Paul conta com o financiamento de Luxemburgo, bem como com o apoio da ONU para a Alimentação e Agricultura (FAO) e do Programa para o Desenvolvimento (PNUD). A meta é transformar o setor agrícola e fomentar a criação de empregos para quase 100 jovens e mulheres e 90 agricultores. 

o projeto "Fomento de Práticas Agrícolas Sustentáveis” do município de Paul conta com o financiamento de Luxemburgo, bem como com o apoio da ONU para a Alimentação e Agricultura (
“Fomento de Práticas Agrícolas Sustentáveis” para a Alimentação e Agricultura l Foto de Binyamin Mellish

Há muitos indícios do declínio das narrativas econômicas que ouvimos e contamos durante todos esses anos. Precisamos escrever novas histórias nesse campo, a partir de uma… Ou, melhor, de diversas perspectivas. O objetivo é resgatarmos ideias que construam um campo teórico-prático para um sistema econômico que reaja (de verdade) às emergências da contemporaneidade em prol dos 99% da população que não está em foco.