Há muito tempo, a humanidade atingiu o prazo limite para entender — de uma vez por todas — que a Terra não é um shopping center com recursos infinitos.
Tornou-se urgente que a sociedade aprenda a olhar a natureza com mais atenção e integralidade: usando a inteligência do ecossistema para criar alternativas que promovam a conservação e auxiliem na sua regeneração.
A Terra em Rede é uma tendência que compreende alternativas sistêmicas, a ciência, a tecnologia e saberes ancestrais como ferramentas para criarmos futuros possíveis; superando o ideal do desenvolvimento como estado econômico, e resgatando-o como experiência vivida.
O problema iminente
Ailton Krenak escreveu que, se a Terra adoecesse, nós adoeceríamos juntos. Mesmo sabendo disso, o governo brasileiro negligenciou os avisos de cientistas e ambientalistas, devastando ainda mais as florestas e áreas de preservação responsáveis pelo equilíbrio climático.
Dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) apontaram que, de agosto de 2021 a julho de 2022, foram derrubados 10.781 km² de floresta, área que equivale a sete vezes a cidade de São Paulo.


Em entrevista ao G1, Mariana Napolitano, Gerente de Ciências do WWF-Brasil, explicou que os números elevados dos últimos três anos refletem o panorama de desmonte ambiental do governo Bolsonaro.
“A causa para o aumento contínuo do desmatamento é o ambiente sem lei que virou o Brasil, especialmente nas áreas de conflito como Amazônia e Cerrado”, afirma Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Nacional Pró Unidades de Conservação. “Em Brasília, sobram discursos inflamados e estímulo contra a legislação ambiental, em campo, falta fiscalização e nos órgãos de controle há cada vez mais a tentativa de diminuir o poder do amparo legal para a cobrança das (poucas) multas aplicadas e cumprimentos de sentença”.
Historicamente, a exploração de recursos naturais em prol do “progresso” teve consequências avassaladoras, principalmente após a Revolução Industrial. Agora, conscientes de que não há mais tempo para reverter os impactos, grandes empresários com respaldo governamental continuam justificando a exploração e sua negligência com a bandeira de que estão engajados com o futuro, o desenvolvimento e a prosperidade econômica.
Não haverá futuro se a lógica do desempenho e do produtivismo continuar imperando em todos os setores da sociedade. Em nosso manifesto, “Por um futuro regenerativo”, compartilhamos nosso entendimento de que, com a intensidade e a velocidade das mudanças do cenário atual, é compreensível que boa parte do nosso tempo seja voltado para a busca de adaptações imediatas para o dia, a semana ou o mês seguintes. No entanto, é imprescindível que adotemos também uma visão de longo prazo sobre os impactos e as projeções dessa crise. É necessário usar o momento atual para pensarmos em novas possibilidades e nos prepararmos para elas, e mentalizarmos como arquitetar a reconstrução do mercado, de forma que fique muito melhor do que o que sempre foi.
Alternativas sistêmicas
Segundo Pablo Solón, ativista ambiental e político boliviano, o que a humanidade enfrenta não é só uma crise ambiental, econômica, social, geopolítica, institucional e civilizatória: essa crise é parte de um todo e é impossível resolver qualquer uma de suas vertentes sem abordar conjuntamente todas as outras, porque elas se retroalimentam.
Estamos vivendo uma crise sistêmica, em que um dos maiores problemas gira em torno do antropocentrismo: o ser humano acredita que está acima da natureza, explorando tudo para transformar em matéria-prima para benefício próprio. Em contraponto ao antropocentrismo e o produtivismo-extrativismo, surgem iniciativas e movimentos sociais com alternativas sistêmicas capazes de superar as estruturas que nos trouxeram até aqui.
O decrescimento tem como fundamento “o abandono do objetivo do crescimento pelo crescimento e da (…) ilusão de felicidade baseada no consumo”. No contexto atual, o decrescimento é uma saída e uma necessidade. Assim, uma economia baseada no decrescimento, em vez de buscar o bem-estar baseado nos índices do PIB, buscaria o bem-estar vivido.
“O crescimento pelo crescimento torna-se o objetivo primordial, senão o único da vida, na sociedade capitalista, o que acarreta uma degradação progressiva do ambiente e dos recursos globais. Vivemos, atualmente, às vésperas de catástrofes previsíveis.”
Serge Latouche
A teoria do decrescimento de Latouche ainda propõe um sistema de 8 “Rs” com mudanças interdependentes para desencadear a formação de uma nova sociedade: reavaliar, reconceituar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar, reciclar. É preciso descolonizar o imaginário do desenvolvimento como um processo inerente, ininterrupto e exploratório que subjuga a natureza em nome de um sistema que só produz desigualdade.
No livro Descolonizar o Imaginário, Miriam Lang, Doutora em Sociologia pela Universidade Livre de Berlim, explica que o desenvolvimento é um processo natural: as plantas, os animais e os humanos se desenvolvem a partir de uma semente, um ovo ou um embrião, até alcançarem a maturidade. Na natureza, esse é um processo cíclico.
A partir disso, podemos adotar a ideia de que o desenvolvimento não é um estado econômico, mas, sim, um processo natural. Precisamos trabalhar no resgate e entendimento do ser humano como parte da natureza, compreendendo a sua ciclicidade e temporalidade.
Hackeando a natureza
A boa — ou satisfatória — notícia é que, nos últimos anos, pessoas em todo o mundo estão se mobilizando para propor soluções inovadoras baseadas no mundo natural. Sandra Rey é uma designer curiosa e fascinada com as maravilhas da natureza e com os animais que produzem o próprio brilho. Ela se inspirou na bioluminescência para criar luzes “vivas” que emitem um brilho suave sem o uso da eletricidade.
Rey é fundadora e CEO da Glowee, uma empresa que combina biomimética com biologia sintética para produzir luzes bioluminescentes que um dia poderão substituir a iluminação elétrica comum, reduzindo as emissões de CO2 que a iluminação gera. As luzes criadas pela Glowee podem assumir qualquer forma e ter diversas aplicações possíveis, como postes de iluminação, adesivos, braceletes etc.


Os povos originários de Rondônia já estão dominando tecnologias voltadas à conservação da natureza. A WWF-Brasil e a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé se juntaram para colocar em ação um projeto de proteção territorial, que está fortalecendo a capacidade de povos indígenas de Rondônia monitorarem seus próprios territórios. A iniciativa tem como objetivo empregar a tecnologia para identificar e registrar invasões sem que, necessariamente, as pessoas envolvidas nas ações de monitoramento tenham que se aproximar das áreas de risco onde os criminosos estão atuando.


Na construção civil, a tecnologia indígena também está servindo de inspiração para a arquitetura bioclimática. Em Cuiabá, Mato Grosso, o arquiteto e urbanista José Afonso Botura Portocarrero, Doutor em Tecnoíndia: Tecnologias de construção indígenas e Conselheiro Federal pelo CAU/MT na Gestão 2021–2023, foi convidado pelo Sebrae para desenvolver o projeto do Centro Sebrae de Sustentabilidade.
A construção possui formato ogival, inspirado em uma oca. Na construção, foram reaproveitados resíduos. O projeto foi adaptado ao terreno em declive, evitando a terraplanagem e preservando a vegetação nativa. Além disso, a construção possui conforto térmico devido à cobertura em duas cascas, que criam um bolsão de ar e promovem o resfriamento interno da construção, além de iluminação natural, captação da água da chuva para reutilização e instalação de compostagem dos resíduos.
Diariamente, surgem novas tecnologias e iniciativas prometendo a redução de danos, mas desconsiderando a totalidade da natureza e os impactos ambientais. Não cocriar em conjunto com o ecossistema nos trouxe o desiquilíbrio climático, acompanhado do espectro da fome, da miséria e da desigualdade. Ainda há tempo para aprender com a natureza e superar o sistema que nos levou à falência.